14 dezembro 2012

Estribilhos e pomposidade: Carlos Fiúza



Estribilhos e pomposidade



Há pessoas inegavelmente instruídas que se riem (e sem razão) se qualquer analfabeto disser, por exemplo, subir para cima, descer para baixo, recuar para trás e outros pleonasmos veniais, que, em certos casos, podem até constituir excelentes processos de reforço.

Condena-se, pois, o que, vendo bem, nada tem por vezes de condenável.

E, todavia, nas falas e nas escritas mais ou menos solenes repetem-se amiúde expressões incoerentes, as quais se tornam impunemente em estribilho de frase difícil.

Vem isto a propósito de já estar farto de ouvir (em qualquer conversa nas nossas televisões) as mais disparatadas asneiras.

Reparemos, por exemplo, nesta maneira de dizer frequentíssima em bocas bem falantes e em penas de estilo pomposo - “sob o ponto de vista”.

“Sob o ponto de vista metafísico”, “sob o ponto de vista político”, “sob o ponto de vista da arte pura”, etc. etc. - eis um jeito de expressão que a todo o instante se exibe, ao cuidar-se de transcendentes problemas.

Nos princípios do século XIX Fr. Francisco de S. Luís, mais conhecido por Cardeal Saraiva, organizou, como se sabe, um “Glossário das Palavras e Frases da Língua Portuguesa, que por descuido, ignorância, ou necessidade se têm introduzido na locução Portuguesa moderna; com o juízo crítico das que são adotáveis nela”.

Quem hoje passar os olhos por esse opúsculo verificará haverem muitas dicções criticadas desaparecido completamente do uso indevido, ao passo que outras se arraigaram e foram consagradas pelo emprego geral.

Ora, a certa altura do velho Glossário, lê-se isto:

“Ponto de vista: (point de vue). É termo da Arte da Pintura, e significa o ponto que o Artista escolhe para pôr os objetos em perspetiva. Também se diz do lugar, donde se pode ver o objeto, ou do lugar, onde o objeto se deve colocar para melhor ser visto. É adotado na linguagem das Artes, e parece necessário”.

Com estas palavras do autor do Glossário estão de acordo dicionários antigos e modernos, de português e de francês.

O conhecido Larousse, que aqui tenho à mão, informa:

“Point de vue, endroit où l’on se place pour voir un object plus ou moins éloigné sur lequel s’étend la vue, et, fig., manière d’envisager les choses”.

Reparemos bem - “sur lequel s’étend la vue”, isto é, sobre o qual se estende a vista.

Nestas condições, a lógica protesta contra a situação inferior ao ponto de vista na visão dos objetos, ou, figuradamente, dos problemas.

Realmente, a gente vê as coisas dum ponto de vista, ou num ponto de vista, e não “debaixo” desse ponto de vista, “sob” esse ponto de vista.

Se compararmos a expressão noutras línguas, veremos que em inglês se diz (correta e logicamente) - “from the point of view” e nunca “under the point of view”.

Por outro lado a Academia Espanhola criticou a expressão “bajo este punto de vista”, que emendou para “desde este punto de vista”.

Mas nós não temos que ver com as outras línguas - poderá alguém observar.

Acho que é conforme se encararem as coisas.

Na verdade, se as outras línguas ajudarem a convencer os obstinados no erro de que certos estribilhos se explicam por mera inadvertência, não há mal (antes vantagem) em se acentuarem contrastes.

Eu, quando noto um erro, gosto de estudar as causas desse erro.

Ora, como se explicará o erro - sob o ponto de vista?

A meu ver desta maneira: começamos por dizer bem - do ponto de vista político, no ponto de vista da arte, etc. Mas, como há equivalências com - sob o aspeto político, etc., cruzaram-se estes modos de dizer, e assim nasceu a dicção ilógica “sob o ponto de vista”, “debaixo do ponto de vista”.

Até já tenho ouvido (e lido) – “sob este fundamento”, “sob esta base”!

A coerência manda dizer sobre este fundamento, sobre esta base, nas há quem inadvertidamente ponha a base ou o fundamento da parte de cima…

Tenho a impressão de que, no mundo da linguagem, há palavras chiques, muito endomingadas, que não deixam de exibir-se nem à mão de Deus-Padre.

Um senhor que discursa com solenidade ou um pensador que opina criticamente acerca de altos problemas, se disser apenas - “A este respeito”, ou “Neste aspeto”, ficará a perder 99% da ênfase oratória ou do brilho estilístico. Mas, se proferir ou se redigir - “Sob o ponto de vista”, então, sim, a expressão torna-se mais majestosa.

E isto é uma fatalidade.

Os estudiosos da Língua têm de se convencer de uma triste verdade: os fenómenos semânticos ou, por outra, as grandes transformações que se operam no sentido dos termos, os desvios da vernaculidade, etc. não se explicam apenas pelas necessidades vitais da expressão, que, por obediência à lei da vida, não pode fugir à alteração contínua.

Há um fator que muito influi na evolução semântica. Esse fator é a vaidade.

“Sob este ponto de vista”, “debaixo do ponto de vista” é expressão vaidosa, preenche as lacunas de muito pensamento, e daí vem a impossibilidade talvez de a desterrar.

Pode a gente fazer notar que a lógica protesta. Inútil.

Os que dizem “sob o ponto de vista” querem estar por “baixo do ponto de vista”, e não saem de lá.

Que se lhes há de fazer?

Nada. É deixá-los estar.





Carlos Fiúza

2 comentários:

Anónimo disse...

e que dizer do acordo ortográfico ,sem acordo?

R.R.M. disse...

Muito siceramente a ideia que tenho em relação á escrita actual e à maneira de falar, é que muita boa gente e essencialmente os politicos. têem no dom da palavra a forma de persuadir, de enganar, os ignorantes e aqueles que se deixam enganar por desatenção ou por conveniência.