14 janeiro 2012

Carta Aberta: Hipocrisia do Conselho de Administração da CP - Ganiel Conde


Fui recentemente confrontado, não sem algum choque, pesem embora anos de experiência como utente e como cidadão a respeito do modus operandi da CP, com uma notícia que dava conta da tentativa desta – galantemente gorada – em vender o Comboio Histórico de Via Estreita do Corgo para um qualquer museu no estrangeiro.
Jacques Daffis, Vice-presidente da FEDECRAIL (Federação Europeia das Associações de Caminhos-de-Ferro Turísticos), com o qual tive já o prazer de trocar algumas impressões sobre a Linha do Tua, foi responsável por indagar junto do próprio Museu Ferroviário Nacional se este tinha conhecimento da tentativa trapalhona de venda da CP deste material único, os quais, mesmo apesar de terem interposto um pedido de cedência deste material, não haviam sido informados. Segundo o próprio, "Essa proposta pareceu-nos escandalosa, porque o material em via métrica português é raro e é uma composição que está em bom estado".
Ao que se apurou, uma porta-voz da CP terá tentado justificar esta trapalhada da seguinte forma: "Podendo haver interesse por alguma companhia ferroviária na sua colocação ao serviço para fins turísticos, a CP fez uma primeira auscultação do mercado para verificar a existência de eventuais interessados”.
E é aqui que eu entro: tem graça, a mim ninguém me perguntou nada.
À margem da minha actividade no Movimento Cívico pela Linha do Tua, do qual sou co-fundador, participei na 1ª edição do concurso nacional de empreendedorismo denominado “Realiza o teu Sonho”, da autoria e responsabilidade da associação Acredita Portugal. O projecto que levei a concurso teve o sugestivo nome de “Turismo Ferroviário na Linha do Tua”, e ficou em 3º lugar, entre centenas de projectos admitidos a concurso (vide http://www.acreditaportugal.pt/realiza-o-teu-sonho1/sumario-dos-projectos.php).
Após receber o galardão em Julho de 2010, indaguei imediatamente o Conselho de Administração (CA) da CP sobre a sua disponibilidade e amabilidade em me receberem em reunião, para lhes poder ser apresentado o meu projecto, uma vez que tinha como ponto fulcral a cedência ou venda do mesmíssimo material histórico de que estamos a tratar nesta carta. Em correio electrónico de 1 de Outubro desse ano, a secretária do Vogal Dr. Nuno Moreira, do CA da CP, fazia-me chegar a deliberação deste membro da cúpula da arruinada empresa pública:
Como é do seu conhecimento a Linha do Tua encontra-se interdita à circulação ferroviária. Nesse contexto, o projecto apresentado de exploração do comboio a vapor de via estreita na referida linha é inviável enquanto se mantiverem as actuais restrições, que, sendo alteradas, permitirão uma reavaliação do projecto.
Não contente com esta desculpa esfarrapada, remeti novo pedido de audiência a 3 de Março de 2011, do qual não obtive ainda qualquer resposta.
Como noticiou e muito bem o jornalista autor da peça pela qual soube desta ignomínia, só na França, Reino Unido e Alemanha, o turismo ferroviário emprega quase quatro mil pessoas, e rende anualmente 174 milhões de euros, por vezes em vias-férreas recuperadas de décadas de ruína com a ajuda de mão-de-obra voluntária. Convém ainda referir que algumas destas jóias industriais, paisagísticas e humanas, desenrolam-se em traçados de distância inferior a 16 km, que é aquela de que a Linha do Tua dispõe actualmente para circulações ferroviárias, entre o Cachão e Carvalhais, fora os 20 km entre a Brunheda e o Cachão – à espera de uma decisão advinda da barragem do Tua – e os 76 km amputados entre Carvalhais e Bragança em 1992, que incluem por exemplo o cume ferroviário português em Santa Comba de Rossas.
Portugal possui 2 serviços turísticos ferroviários apenas, ambos no troço Régua – Pocinho, o mais ameaçado de extermínio na Linha do Douro. Entre os países francófonos da Europa, são 70 as empresas de exploração ferroviária turística, e na Espanha só a FEVE – maior operadora de Via Estreita do país de nuestros hermanos – conta com quase 10 destes serviços, de entre os quais 2 são comboios de luxo com programas de uma semana inteira. No País de Gales, o pequeno/grande projecto e exemplo de empreendedorismo e civismo da Welsh Highland Railway foi responsável por recuperar uma Via Estreita cuja linha há décadas havia desaparecido, graças a apoios comunitários, mas também a mecenas e voluntários de todos os quadrantes sociais; emprega 65 funcionários, gera anualmente 15 milhões de libras esterlinas de receitas para a economia local, e criou 350 postos de trabalho indirectos na região. A sua extensão é de 40 km – da Brunheda a Carvalhais, na Linha do Tua, são 37 km.
No País Basco, existe uma automotora Allan em exibição que circulou anos a fio nas Linhas do Tua e do Vouga, para além de uma locomotiva a vapor que faz serviços turísticos, gratificantemente apelidada de “Portuguesa”; na Suíça, o comboio histórico do Vale do Jura circula com outra locomotiva a vapor que cruzou a orografia trasmontana décadas a fio; nos Andes, as “Xepas” – automotoras que serviram nas Linhas do Tua e do Corgo – escalam montanhas de emoções únicas; na África subsaariana, as mais potentes locomotivas diesel de Via Estreita que circularam em Portugal (1.000 cavalos de potência), sendo a Linha do Tua a última via que serviram, rebocam pobres carruagens apinhadas de gente; recentemente, outra locomotiva a vapor de Via Estreita foi desmantelada e levada do Pocinho para a Alemanha para restauro, enquanto as fantásticas carruagens italianas “Napolitanas” apodrecem com displicência no Tua, e o museu ferroviário de Bragança segue com mais de 10 anos de encerramento.
Na qualidade de cidadão português trapaceado e negligenciado por um Conselho de Administração que esbanja nesciamente todos os anos o meu dinheiro de impostos, e que prefere ver material histórico ferroviário de Via Estreita exposto em museus estrangeiros, a rebocar comboios turísticos ou de passageiros no estrangeiro, ou a apodrecer e a cair aos pedaços em linhas de resguardo ou escondidos da vista em cocheiras espalhadas pelo país a fora, venho por este meio exigir uma satisfação. De quem, tanto faz, desde que tenha a vergonha e a decência de dar a cara por 30 anos de extermínio e escárnio do nosso património ferroviário de Via Estreita PORTUGUÊS, e explicar como é que é possível que certos gestores e governantes clamem por iniciativas privadas, quando ao mesmo tempo tecem todos os esforços e ardis por castrar todas elas sem um pingo de decência, honra patriótica, ou pura e simples vergonha na cara.

Mirandela, 12 de Janeiro de 2012
Daniel Conde

2 comentários:

mario carvalho disse...

A alternativa é o material em segunda mão espanhol. Tem ar condicionado e assentos mais confortáveis do que as composições anteriores, mas está longe de ser o material mais adequado para uma linha com potencial turístico, onde muitos passageiros desejam abrir a janela para melhor usufruir da paisagem.


A CP, em resposta a questões do PÚBLICO, diz que "não existem estudos que possam sustentar uma resposta sobre as opiniões dos clientes relativamente a estas automotoras"


Pinhão (tal como a Régua) é uma das poucas estações do Douro que ficam no centro das localidades que servem. A assistente de direcção do CS Vintage House Hotel, Patrícia Silva, já ouviu falar da intenção de fechar a linha da Régua ao Pocinho, mas não prevê uma diminuição do fluxo de clientes, embora considere que os programas turísticos desenvolvidos nas imediações, que incluem tours de comboio, possam sair afectados, caso a medida venha a concretizar-se.


O restaurante Calça Curta é o único estabelecimento visível nas imediações da estação do Tua. Apesar de se situar a escassos metros da linha, mesmo em frente à estação, o proprietário acredita na força da reputação da casa: "[Os clientes] se não vierem de comboio, vêm de carro ou de avião." Apesar de tudo, acredita que o encerramento do troço Régua-Pocinho não será concretizado, dado o potencial paisagístico do percurso. O empresário da restauração observa que o trajecto Porto-Vigo (cujo encerramento também está previsto) dispõe de alternativas, o que não acontece com este. Mas se a alternativa for fechar a linha para o Pocinho, podem contar com a sua indignação: "Que nos entreguem aos espanhóis!"


Faltam estudos


A CP não sabe quantos dos seus passageiros do Douro viajam por motivos de lazer. Em 2010, nos meses de Junho, Julho e Agosto, viajaram na Linha do Douro 306 mil passageiros, dos quais 62 mil em comboios especiais ou em grupos organizados pela empresa. Dos restantes 244 mil ignora quantos viajaram por motivos estritamente turísticos, embora admita que, "nesta época do ano", "existem números consideráveis de turistas individuais (não organizados em grupos) que viajam na oferta regular". Este ano, antes ainda do final do mês de Agosto, o número de clientes neste eixo era de 289 mil, dos quais 54 mil em viagens organizadas.


Chegada ao Pocinho. Os transeuntes e os automóveis contam-se pelos dedos. Apesar de ser hora de almoço, são poucos os clientes do café-restaurante O Gaveto, em frente à estação. As mesas onde se servem os almoços estão quase todas vazias, e os turistas acabados de chegar não entram. Segundo a proprietária, seguem directamente para as camionetas que os hão-de levar ao passeio turístico de barco pelo Douro.



Governo avalia


No entanto, este cenário despovoado pode sofrer uma alteração em breve, com a inauguração do Centro de Competição de Remo do Pocinho. Este é, aliás, um dos motivos que levam Gustavo Duarte, presidente da Câmara Municipal de Foz Côa, à convicção de que o troço é para manter. "Nem me passa pela cabeça que isso se irá concretizar", exclama o edil. Além do centro de remo, actualmente em construção, o autarca lembra a tomada de posse da nova administração do Museu do Côa (o Governo deu recentemente luz verde à criação da Fundação Côa Parque), salientando que a publicidade em torno da região justifica a manutenção da linha.


Questionado sobre o eventual encerramento de parte da linha do Douro, o Ministério da Economia e Emprego, que tutela a Secretaria de Estado dos Transportes, apenas diz que a matéria está a ser avaliada.

mario carvalho disse...

Aumento da procura leva CP a adiar encerramento da ligação Régua-Pocinho
Por Carlos Cipriano e Cátia Vilaça - 03-12-2011
Apesar de ter adiado o encerramento do último troço da Linha do Douro, o fim da ligação Régua-Pocinho continua a constar do rol das ferrovias a fechar do plano apresentado à troika. Governo analisa o caso
A "supressão de circulações entre Régua e Pocinho" era uma das medidas de redução de custos do Plano de Actividades e Orçamento de 2011 da CP, que deveria ter sido implementada em Fevereiro deste ano, mas que a empresa deixou caiu por "haver procura" neste troço.


Esta decisão consta do relatório semestral de gestão da CP, a que o PÚBLICO teve acesso, no qual estes 68 quilómetros de via férrea continuam, todavia, a constar na lista dos 800 quilómetros de linhas que poderão encerrar, nos termos do plano apresentado pela Refer à troika.


O aumento da procura no Douro é sazonal, tendo-se verificado nos últimos meses comboios congestionados, com passageiros a viajar de pé, insatisfeitos por terem comprado um passeio de comboio na linha mais bonita do país e não encontrarem condições para apreciar devidamente a paisagem.


"A minha mãe foi hoje levar a Margarida ao Lamego [estação da Régua] no comboio das 9h15 em S. Bento e assistiu novamente à pouca-vergonha: o comboio partiu atafulhado de gente em pé, a ponto de ter ficado em Ermesinde à espera de composição para sentar as pessoas. Mesmo assim, ainda seguiram pessoas de pé! Eu fui levá-las lá e presenciei a quantidade de turistas estrangeiros que viajavam nele". Este é o conteúdo de uma reclamação entregue na CP durante o mês de Agosto. Na estação da Régua assistiu-se frequentemente à partida de composições com gente de pé, na sua maioria utentes que usavam o comboio não por necessidade de mobilidade mas pelo puro prazer da viagem.


O comboio acaba de sair da Régua para o Pocinho. José Ribeiro viaja com um grupo de 20 amigos. É a segunda vez que percorre o Alto Douro vinhateiro de comboio, e garante que esta é a única forma de o fazer serenamente. "De autocarro chegamos enjoados, e depois temos uma prova de vinhos à espera". Apenas uma unidade com três carruagens faz o trajecto final Régua-Pocinho. Quem vem do Porto tem de se certificar na Régua de que está na carruagem certa, ou mudar aí para as da frente, como aconselha o revisor, porque à saída de S. Bento a composição é formada por duas automotoras de três carruagens cada que, neste domingo soalheiro, vão quase cheias.


Abel Lameiro é outro dos convivas. É estreante no troço Régua-Pocinho, mas já lhe reconhece potencial turístico. Defende a aposta numa maior publicitação da linha para tirar partido desse mesmo potencial. Paulo Coelho aponta na mesma direcção do companheiro de viagem. Em vias de se mudar para a região, vai passar de turista a passageiro frequente, pelo que defende melhorias no sentido de tornar a linha mais atractiva. Defende a criação de uma verdadeira rota turística, acessível por bilhete simples aos residentes e vendida a um preço mais elevado a turistas. Esse aumento de preço seria acompanhado por uma melhoria no serviço, como a criação de um bar à disposição dos passageiros.


O problema é que a CP não tem comboios para esta linha. As automotoras que por aqui circulam são espanholas e a CP paga por elas 5,35 milhões de euros anuais à Renfe. O contrato tem a duração de cinco anos e deverá ser prorrogado, porque a transportadora portuguesa não tem material para este serviço, dado que parte das locomotivas e carruagens que estavam afectas ao Douro foram vendidas à Argentina.