16 outubro 2010

A retoma

Conheço um que andou por aqui a provar a nudez das divindades. Para ser ouvido adoptou um estilo cómico e manhoso, mas que muito divertia porque achavam que era ficção. Aqui contou histórias curtas de personagens mais ou menos ilustres que têm feito a história (não sei se deva escrever com letra maiúscula) do nosso lugar. Do guardador de retretes ao guardador de rebanhos, do jardineiro ao escrivão, do engraxador de sapatos de verniz à regedora, da rameira à bem-aventurada, da avantajada à somítica, tudo serviu de pretexto para caracterizar a gesta. Descreveram-se os personagens mais interventivos, os ratos novos e os velhos, os cães de caça e os de guarda, as raposas e as cigarras, em suma, os animais de rapina que se tornaram mais comuns. Também os mais exóticos e iluminados foram contemplados. Todos os temas serviram: - As excursões às Terras Santas, as visitas ao Jardim Zoológico para se observar os elefantes brancos, as festas tradicionais com procissão, os foguetórios e a música medieval, os grandes projectos recreativos, as monumentais campanhas eleitorais, com vivas aos vencedores e os ilustres condecorados. Descreveram-se lugares de eleição, como o luxo dos parques de merenda, a beleza dos monumentos luminosos e aquáticos, o sítio privilegiado do cemitério, os lugares seleccionados para o complexo desportivo ou para o museu tradicional.
Finalmente parece ter acabado a ficção. Terá chegado a realidade! Quem estará preparado para a receber!? Já se começa a sentir na pele as consequências e parece que o medo deixou todos paralisados. Onde estão os retirados, os cantadores, os gabarolas e fanfarrões que por aqui se divertem a comentar, que não os ouço a criticar ou denunciar agora, o que está mal! Eu que sempre encontrei neles talento para convencer o povo ignorante vejo agora o pretexto maior para que o ajudem a prolongar a ilusão em que vinha vivendo. Caso contrário só vejo uma solução. É a de procurarem entre os mais velhos, que nos ensinem a viver como eles viveram na sua geração. A saber viver com o resultado do trabalho e não à custa dos outros, pedindo para que as gerações futuras paguem. É assim que eu vejo a retoma.
E deixemo-nos de lamúrias porque não temos desculpa.

3 comentários:

Anónimo disse...

Peço desculpa ao autor deste texto, mas, infelizmente, não acredito, ainda, na RETOMA de que fala.

No final do artigo é referido que, cito, “ (…) A saber viver com o resultado do trabalho e não à custa dos outros, pedindo para que as gerações futuras paguem”.

Assim, caro autor, não sei se sabe, mas, concordará comigo que, enquanto houver aposentados que, após terminarem o mandato politico, para o qual foram eleitos (ou bem ou mal!) a receber subsídio de reintegração [?] (não sei que reintegração é essa; mas, isso é outra história!), na minha opinião, NÃO PODE HAVER RETOMA alguma, já que essa receita, como sabe, não são fruto do trabalho, mas tão só, “à custa dos outros” que, efectivamente, pagam os seus impostos.

Sentinela

mario carvalho disse...

Caro Helder Carvalho

Muito oportuno o tema

Não é fácil , nem a um anónimo, quanto mais àqueles que têm a coragem de se identificar, manter uma certa coerencia e " aguentarem " ou então terem capacidade de assumir que " têm uma grande capacidade de adaptação às circunstâncias"


Continue a brindar-nos com os seus comentários.. MUITO CORAJOSOS e que denotam preocupação com a sua , nossa terra, assim como os outros... todos juntos e... somos tão poucos.. pode ser que consigamos que
NÃO NOS CASTREM E ELIMINEM

cumprimentos

mario

Anónimo disse...

Apetite e Fome

A fome é negra - diz o nosso povo com intensa expressão e impressionante verdade.

Tão verdade é que Deus nos ensinou a pedir-Lhe: “o pão-nosso de cada dia nos dai hoje”.

Desde que o homem foi condenado a ganhar o pão com o suor do seu rosto, a incerteza de conseguir o sustento ficou de tal maneira a acompanhar o coração humano que os homens se esfalfam no agarrar do alimento, esfalfamento que se traduz no conseguir ou no conservar o símbolo do trabalho - o dinheiro, ou até, infelizmente, no processo de o amealhar ilicitamente.
Ninguém sabe, pois, se algum dia quererá comer, não tendo nem migalha ou, como diz o povo, não tendo “nemigalha”.

Nesta divagação podemos admitir, desde já, que a “fome” é a necessidade de comer, não havendo o quê.
A FOME é o desejo violento de comer, a necessidade urgente, dolorosamente ansiosa de meter um alimento à boca.
Fome é apetite, mas apetite excessivo, com urgente e ingente necessidade de comer.
Sim, a fome é negra. Tem a negridão daquele estado em que um desgraçado se encontra, quando não tem o sustento, que não falta às avezinhas do céu, nem aos vermes da terra, nem aos peixes do mar.

Fome - já tenho pensado nisto muita vez - é possibilidade inerente aos homens e às feras. Porquê? Porque entre as feras, como entre os homens, há o egoísmo, a luta pelo bocado, a ânsia por cada qual se governar com um naco ou com bons pedações…

Jesus Cristo que ensinou os homens a serem menos feras (“amai-vos uns aos outros”), ensinou-os a pôr confiança, por este rogo - “o pão-nosso de cada dia nos dai hoje”.
Fome é a falta desse pão.
Fome é necessidade de comer. Vontade de comer pode não ser fome. Pode ser um simples apetite.
Apetite é desejo, é procura. “Appetitus” é a faculdade de desejar, de querer chegar a…
O apetite é o desejo maior ou menor de comer.
Porém, a FOME é apetite com urgência de satisfação.

Mas as palavras são levianas.
As palavras doidejam por vezes em irregulares passeatas pelo campo da semântica.
Elas são inconstantes; não querem um significado apenas.

Existe um vocábulo helénico muito prestadio que pode entrar neste jogo de considerações sobre a fome. É “eufemismo”.
Com eufemismo se nomeia a arte ou o artifício de encobrir as verdades tristes ou rudes da vida por meio de palavras mais suaves, menos duras.

FOME é termo violento, e assim as expressões “vontade de comer, querer comer, ter apetite” podem abrandar a rudeza daquela palavra.

Mas a palavra FOME está lá… com ou sem eufemismo!
Como outras virão… com estes ou outros nomes!

Carlos Fiúza